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“Recentemente, meu pai lutava contra um câncer raro e agressivo e ainda assim dedicou boa parte de seu tempo – precioso para ele, para mim e para todos que o amam – na luta também pela preservação do patrimônio histórico e cultural de Caratinga, MG. Não lutou sozinho, nem contra o câncer e nem contra o apagamento da memória. Como presidente do Compac (Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Caratinga), dentre as diversas batalhas, ajudou a articular um acordo que contemplasse tanto os interesses da coletividade quanto os da família proprietária de um imóvel tombado, para sua restauração. Isso lhe deu alegria num momento de dor. No entanto, foi criticado por aqueles que, impedidos por uma visão utilitária do mundo, não são capazes de vislumbrar um futuro para a cidade e para o país que não passe pelo lucro. O cinema de arquitetura Art Déco, em transição para o modernismo e inaugurado em 1947, será reconstruído. Os proprietários saíram ganhando pois os direitos coletivos também são seus. É bom que seja assim. Preservarão uma parte da memória da cidade, do país e de si mesmos. Ele não verá aquele prédio antigo que fez parte de sua infância reconstruído.
Também não sentiu a tristeza de ver o Museu Nacional arder em chamas. Teria ido às lágrimas. Mas não é somente dele, meu pai, que se trata este texto. Aqui, diferente do papel que teve em minha vida, ele é coadjuvante. Aqui quero tratar de nossos valores e nossas responsabilidades.
Não é de agora a responsabilidade pelo que ocorreu no último domingo. São anos de descaso dos governos, todos eles. É um descaso nosso. Isso inclui a imprensa, o judiciário, os grupos que representam a sociedade civil etc. Falamos sempre em direitos e nos esquecemos de que ele jamais estará dissociado de um dever. É um dever de cada cidadão preservar a história. É um dever de cada cidadão fazer o bem. Todos conhecem os principais personagens das principais novelas das principais emissoras, mas poucos sabiam das riquezas destruídas. É mais lucrativo vender uma visão maniqueísta de mundo e um padrão de felicidade atrelado ao consumo do que informar o cidadão sobre sua própria cultura e origem. Não podemos confundir entretenimento com jornalismo, sobretudo o bom jornalismo, independente, que tem como gênese o princípio da dignidade humana a lhe conferir valor. No entanto, a utilidade do entretenimento não está em si, mas no lucro e na distração como um expediente eficiente no controle da crítica. Estamos moldando uma sociedade acrítica e criando uma legião de adultos infantis, inábeis para lidar com os desafios que temos pela frente, incapazes de uma reflexão profunda. O diálogo no país foi interrompido e cada um defende uma autoverdade. Notícia falsa passa a ser aquilo que não se enquadra no horizonte de mundo de quem a recebe, pois o contraditório causa desconforto. Não aprendemos que a frustração faz parte da vida e mais do que a era da pós-verdade vivenciamos a era da pós-honestidade, termo criado por Conrado Hubner Mendes, isto é, pouco importa se a informação é falsa: amoldando-se à uma percepção ela é automaticamente replicada. O ato em si é menos importante do que compreender a cisão que lhe causa. Assim, neste episódio específico, cada um colocará a culpa em quem lhe convêm como uma verdade incontestável e deixaremos de olhar para um cenário mais amplo.
Devo ser honesto então, devemos todos, e digo que não tenho a pretensão de trazer uma verdade imparcial e imperativa, apesar da verdade possuir um lado. Contudo, acredito que aliado a todo o nosso descaso, o projeto de governo dos que perderam as eleições em 2014 literalmente queima o Brasil, já acostumado a queimar pelos governos anteriores, numa velocidade atordoante e em variados sentidos. O Museu Nacional é apenas uma metáfora disso. Esse sentimento é no mínimo compartilhado por uma boa parcela dos brasileiros. Parcela essa que se vê cada vez mais afastada, violentamente, do processo democrático.
Quanto maior a participação dos diversos grupos sociais no processo de tomadas de decisão mais saudável é uma democracia. Ela não se resume pela liberdade de votar, nem poderia, mas de participar efetivamente, pois como é impossível para cada um dos 208 milhões de habitantes participarem do poder de mando, isso se faz através de grupos sociais que dialogam com os representantes eleitos, e não eleitos, que tomam por nós as decisões. Cortando esse canal de diálogo a democracia perde ainda que tenhamos a liberdade de escolher representantes.
No auge da impopularidade do governo Dilma — que tem evidente sua parcela de culpa, mas que nenhum outro político ou governante a partir de 1889 teria a moral para lhe apontar o dedo —, foi dito explicitamente que em razão de sua baixa aprovação havia ela perdido legitimidade, muito embora tenhamos cláusula de proibição à revogação de mandato e cuja única exceção admitida não se materializou, para logo após, com o Temer, afirmarem que sua impopularidade seria útil às “necessárias reformas” já que não precisaria se preocupar com um capital político que não tem e jamais terá; o que faz sentido se admitirmos que ele não foi convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade mas os interesses particulares de uma ou outra categoria. Não é demais lembrar que um de seus primeiros atos foi a extinção do Ministério da Cultura, revogado após pressão popular. É evidente que reformas são necessárias, mas é preciso cautela com os termos políticos, pois sempre escondem seu significado real. Experimentamos um ajuste fiscal que não é ajuste fiscal. Uma reforma trabalhista que não é reforma trabalhista. Um combate à corrupção que não é somente um combate à corrupção.
A utilidade tem sido a tópica deste momento histórico e, paradoxalmente, em nome dela revogam-se os direitos de todos, e sequer alcançamos os fins almejados. Apaga-se a memória coletiva. Não há vencedores.
O subtítulo do texto tirei do clássico A Luta Pelo Direito de Rudolf Von Ihering, onde o autor explica que não há utilidade num princípio, pois seu valor está em si mesmo.
Antes de um ajuste fiscal deveríamos compreender e debater a função do Estado, quais são seus valores fundantes e prescritos na Constituição Federal, que já representou ao tempo de sua promulgação os anseios de uma nação. O que significa o princípio da solidariedade e o que ele representa de concreto para a classe trabalhadora, antes de aprovarmos uma terceirização irrestrita. O que significa a presunção de inocência e a nossa luta histórica e inacabada para sua efetiva concretização, sobretudo no país que prende e mata indiscriminadamente, dentro e fora do presídio, o menino negro e pobre, antes de lutarmos por um punitivismo exacerbado que não deveria ter lugar na sociedade do encarceramento em massa e usa a estrutura do direito penal como mecanismo de controle social. Antes de aplaudirmos um judiciário populista, ativista, deveríamos compreender que sua relevância está justo no oposto e que cabe à sociedade organizada se ocupar do papel de ser vanguarda iluminista. Ao bom juiz cabe a resignação de que suas decisões muitas vezes não corresponderão à sua própria percepção do mundo. É necessário compreendermos patrimônio cultural material e imaterial não como um conceito bonitinho, mas como agente capaz de moldar uma sociedade pelos valores que representa.
Tudo isso tem a ver com esse momento que se incendeia, pois é impossível tomarmos qualquer medida sem que mais nada se altere. Parece que nos esquecemos que o pacto civilizatório representado pela carta de 1988 traçou uma linha da qual não deveríamos ultrapassar. Não apenas a ultrapassamos, já não a enxergamos mais. Reconstruí-la pelo diálogo e pela luta é tarefa que nos impõe, sob pena de inexistirmos como povo, assim como agora inexiste nossa história”.
5 de setembro de 2018
O autor do artigo, Felipe Leitão, é egresso do curso de Direito da unidade Doctum Juiz de Fora.
“Recentemente, meu pai lutava contra um câncer raro e agressivo e ainda assim dedicou boa parte de seu tempo – precioso para ele, para mim e para todos que o amam – na luta também pela preservação do patrimônio histórico e cultural de Caratinga, MG. Não lutou sozinho, nem contra o câncer e nem contra o apagamento da memória. Como presidente do Compac (Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Caratinga), dentre as diversas batalhas, ajudou a articular um acordo que contemplasse tanto os interesses da coletividade quanto os da família proprietária de um imóvel tombado, para sua restauração. Isso lhe deu alegria num momento de dor. No entanto, foi criticado por aqueles que, impedidos por uma visão utilitária do mundo, não são capazes de vislumbrar um futuro para a cidade e para o país que não passe pelo lucro. O cinema de arquitetura Art Déco, em transição para o modernismo e inaugurado em 1947, será reconstruído. Os proprietários saíram ganhando pois os direitos coletivos também são seus. É bom que seja assim. Preservarão uma parte da memória da cidade, do país e de si mesmos. Ele não verá aquele prédio antigo que fez parte de sua infância reconstruído.
Também não sentiu a tristeza de ver o Museu Nacional arder em chamas. Teria ido às lágrimas. Mas não é somente dele, meu pai, que se trata este texto. Aqui, diferente do papel que teve em minha vida, ele é coadjuvante. Aqui quero tratar de nossos valores e nossas responsabilidades.
Não é de agora a responsabilidade pelo que ocorreu no último domingo. São anos de descaso dos governos, todos eles. É um descaso nosso. Isso inclui a imprensa, o judiciário, os grupos que representam a sociedade civil etc. Falamos sempre em direitos e nos esquecemos de que ele jamais estará dissociado de um dever. É um dever de cada cidadão preservar a história. É um dever de cada cidadão fazer o bem. Todos conhecem os principais personagens das principais novelas das principais emissoras, mas poucos sabiam das riquezas destruídas. É mais lucrativo vender uma visão maniqueísta de mundo e um padrão de felicidade atrelado ao consumo do que informar o cidadão sobre sua própria cultura e origem. Não podemos confundir entretenimento com jornalismo, sobretudo o bom jornalismo, independente, que tem como gênese o princípio da dignidade humana a lhe conferir valor. No entanto, a utilidade do entretenimento não está em si, mas no lucro e na distração como um expediente eficiente no controle da crítica. Estamos moldando uma sociedade acrítica e criando uma legião de adultos infantis, inábeis para lidar com os desafios que temos pela frente, incapazes de uma reflexão profunda. O diálogo no país foi interrompido e cada um defende uma autoverdade. Notícia falsa passa a ser aquilo que não se enquadra no horizonte de mundo de quem a recebe, pois o contraditório causa desconforto. Não aprendemos que a frustração faz parte da vida e mais do que a era da pós-verdade vivenciamos a era da pós-honestidade, termo criado por Conrado Hubner Mendes, isto é, pouco importa se a informação é falsa: amoldando-se à uma percepção ela é automaticamente replicada. O ato em si é menos importante do que compreender a cisão que lhe causa. Assim, neste episódio específico, cada um colocará a culpa em quem lhe convêm como uma verdade incontestável e deixaremos de olhar para um cenário mais amplo.
Devo ser honesto então, devemos todos, e digo que não tenho a pretensão de trazer uma verdade imparcial e imperativa, apesar da verdade possuir um lado. Contudo, acredito que aliado a todo o nosso descaso, o projeto de governo dos que perderam as eleições em 2014 literalmente queima o Brasil, já acostumado a queimar pelos governos anteriores, numa velocidade atordoante e em variados sentidos. O Museu Nacional é apenas uma metáfora disso. Esse sentimento é no mínimo compartilhado por uma boa parcela dos brasileiros. Parcela essa que se vê cada vez mais afastada, violentamente, do processo democrático.
Quanto maior a participação dos diversos grupos sociais no processo de tomadas de decisão mais saudável é uma democracia. Ela não se resume pela liberdade de votar, nem poderia, mas de participar efetivamente, pois como é impossível para cada um dos 208 milhões de habitantes participarem do poder de mando, isso se faz através de grupos sociais que dialogam com os representantes eleitos, e não eleitos, que tomam por nós as decisões. Cortando esse canal de diálogo a democracia perde ainda que tenhamos a liberdade de escolher representantes.
No auge da impopularidade do governo Dilma — que tem evidente sua parcela de culpa, mas que nenhum outro político ou governante a partir de 1889 teria a moral para lhe apontar o dedo —, foi dito explicitamente que em razão de sua baixa aprovação havia ela perdido legitimidade, muito embora tenhamos cláusula de proibição à revogação de mandato e cuja única exceção admitida não se materializou, para logo após, com o Temer, afirmarem que sua impopularidade seria útil às “necessárias reformas” já que não precisaria se preocupar com um capital político que não tem e jamais terá; o que faz sentido se admitirmos que ele não foi convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade mas os interesses particulares de uma ou outra categoria. Não é demais lembrar que um de seus primeiros atos foi a extinção do Ministério da Cultura, revogado após pressão popular. É evidente que reformas são necessárias, mas é preciso cautela com os termos políticos, pois sempre escondem seu significado real. Experimentamos um ajuste fiscal que não é ajuste fiscal. Uma reforma trabalhista que não é reforma trabalhista. Um combate à corrupção que não é somente um combate à corrupção.
A utilidade tem sido a tópica deste momento histórico e, paradoxalmente, em nome dela revogam-se os direitos de todos, e sequer alcançamos os fins almejados. Apaga-se a memória coletiva. Não há vencedores.
O subtítulo do texto tirei do clássico A Luta Pelo Direito de Rudolf Von Ihering, onde o autor explica que não há utilidade num princípio, pois seu valor está em si mesmo.
Antes de um ajuste fiscal deveríamos compreender e debater a função do Estado, quais são seus valores fundantes e prescritos na Constituição Federal, que já representou ao tempo de sua promulgação os anseios de uma nação. O que significa o princípio da solidariedade e o que ele representa de concreto para a classe trabalhadora, antes de aprovarmos uma terceirização irrestrita. O que significa a presunção de inocência e a nossa luta histórica e inacabada para sua efetiva concretização, sobretudo no país que prende e mata indiscriminadamente, dentro e fora do presídio, o menino negro e pobre, antes de lutarmos por um punitivismo exacerbado que não deveria ter lugar na sociedade do encarceramento em massa e usa a estrutura do direito penal como mecanismo de controle social. Antes de aplaudirmos um judiciário populista, ativista, deveríamos compreender que sua relevância está justo no oposto e que cabe à sociedade organizada se ocupar do papel de ser vanguarda iluminista. Ao bom juiz cabe a resignação de que suas decisões muitas vezes não corresponderão à sua própria percepção do mundo. É necessário compreendermos patrimônio cultural material e imaterial não como um conceito bonitinho, mas como agente capaz de moldar uma sociedade pelos valores que representa.
Tudo isso tem a ver com esse momento que se incendeia, pois é impossível tomarmos qualquer medida sem que mais nada se altere. Parece que nos esquecemos que o pacto civilizatório representado pela carta de 1988 traçou uma linha da qual não deveríamos ultrapassar. Não apenas a ultrapassamos, já não a enxergamos mais. Reconstruí-la pelo diálogo e pela luta é tarefa que nos impõe, sob pena de inexistirmos como povo, assim como agora inexiste nossa história”.
5 de setembro de 2018
O autor do artigo, Felipe Leitão, é egresso do curso de Direito da unidade Doctum Juiz de Fora.